Entrevista com a escritora Cássia Penteado

Cássia Penteado - Entrevista com a escritora Cássia Penteado

 

 

 

FERNANDO ANDRADE:  Pensei no seu romance com as mãos. Lugar e jeito de criar e escrever o imaterial até a própria fantasia. De dar forma às esculturas, de produzir formas engenhosas, e criativas, de dar a luz ao alimento, e  o sentimento. E a própria transformação do eu em experiência, memória. Fale disso. 

CÁSSIA PENTEADO: Eu lia Jun’ichiro Tanizaki, um dos maiores autores da literatura japonesa moderna. No livro“Em louvor da sombra”, ele discorre sobre o choque entre as culturas Oriental e Ocidental. No entanto, como ele, também me considero uma discípula da arte e da beleza contra o objetivismo. Talvez tenha sido esse o mote que me levou a escrever Haikai. Queria trazer à luz a beleza vista sob a ótica oriental.

Tanizaki ressalta, por exemplo, a importância dos castiçais, da parca iluminação das velas para ressaltar a beleza da laca japonesa que “só se revela plenamente na penumbra” , ele afirma.

Uma wan, (tigela), revestida de laca preta, e servida de missoshiru, sob a luz bruxuleante das velas, (diferentemente da iluminação estridente da luz elétrica) revela a profundidade, a densidade do caldo.

São os sentidos provocados para estarem presentes.

 Nós ocidentais, aprendemos a apreciar a louça branca, a prata reluzente, o brilho.

Enquanto no Oriente, valoriza-se as marcas do manuseio, a superfície opaca, os indícios que denunciam o passar do tempo.

Passei a enxergar o acúmulo de instantes.

Numa manhã, servi o papaya em um prato de cerâmica escuro. E o laranja do mamão destacou-se sobremameira, naturalmente não apenas comi, diante de nova beleza, saboreei a fruta. Meus sentidos estavam presentes no momento da ação.

Tenho um dimer que controla a iluminação da sala de jantar, cuja luz incide sobre um arranjo de bromélias. Uma noite, quando já me recolhia, girei o dimer lentamente com os ensinamentos de Tanizaki em mente. E observei os vários tons da dramaticidade provocados pela redução da intensidade de luz sobre as flores.

Foi imbuída desse espírito de admiração pela descoberta de uma outra faceta da beleza, que me dispus a escrever Haikai. A percepção do belo é só uma das certezas que repousam sem questionamento em nosso inconsciente. E a beleza descrita em Haikai, exigia, desde sempre, uma apresentação, um vestuário, tanto na apresentação gráfica, como na capa, nas ilustrações internas. Os livros de poemas japoneses, de haicai,  tem “haiga” (ilustrações) e meu romance Haikai também exigiu… Ele veio assim, e como num origami, fomos realizando dobraduras no papel para que ele fosse um todo.

FERNANDO ANDRADE:  Há na cultura japonesa, uma infinita sabedoria pelo, pormenor, pela delicadeza, onde cada objeto parece que extrapola seu sentido usual, criando efeitos plurais de significados. É como se um objeto fosse quase um efeito estético e não somente uso objetivo. E seu texto capta esta polissemia de caminhos e sentidos. Como foi desenvolvê-lo assim deste jeito?

CÁSSIA PENTEADO: Quando buscava um nome para Sayuri, a personagem que me levou ao Japão, descobri que para os orientais, o significado do nome importa mais que o nome em si. Então, escolhi Sayuri, como ocidental que sou, a sonoridade me atraiu, no entanto, a convicção veio após começar a escrever sobre ela, e notar seu espírito dotado de uma ousadia delicada. Sayuri, “pequeno lírio que nasce adiantado”, trazia o grau de rebeldia que eu procurava.

Há poesia nos significados. Nada é em vão, por acaso, ou por descuido, também procurei ser cuidadosa.

Escrever esse romance, que traz em seu corpo a cultura japonesa, me fez coletar muito material e, não sem dor, descartar preciosidades. Há pluralidade nos significados e significado contido em toda coisa. Um detalhe de pesquisa, como o Obi, a faixa que acintura o quimono, não é apenas uma faixa que acintura o quimono; há uma diversidade de significados nesse simples item que compõe o vestuário tradicional japonês. Assim, cada palavra pesquisada me levava a uma infinidade de possibilidades encantadoras, como o canto da sereia. Tinha que me conter, não escrevia um manual sobre o Japão, mas um haicai em prosa. A brevidade narrativa era essencial. Para essa finalidade, tinha que fazer conter muitos signos em poucas palavras. Japão ainda vibra condensado em mim.

Eu senti necessidade e pedi para meu editor respeitar os espaços maiores que deixei entre as frases, entre alguns parágrafos, no texto original, por precisar respirar, dar lugar a completude para degustação do texto. É o Ma. Como diz Telma Shiraishi, no texto de apresentação de orelha de Haikai: “é no Ma, no vazio místico do ideal japonês que reside todo o universo de possibilidades, promessas, desejos e significados.” Assim, até o espaço em branco tem importante significado, e esse eu pude intuir.

Mesmo a capa de Haikai, obra da artista Mika Takahashi, há uma imensidão de entendimentos sobre ela. É o poder da arte.

FERNANDO ANDRADE: A poesia do haicai parece um complemento do signo da manufatura da arte dos cogumelos, de entrar numa espécie de puzzle onde os efeitos se multiplicam, não apenas cozinhar e também estetizar um laço que seria apenas fisiológico de comer, para também, o da beleza, sinestésica. E o haicai tem esta explosão de multiformas, ele tem um tamanho pequeno, mas é elástico em suas significações. Me fale desta relação.

CÁSSIA PENTEADO: Nesta questão você me remete diretamente a uma palavra japonesa, de difícil tradução: Shibumi– tenta definir o grande requinte oculto sob uma aparência corriqueira. A cultura dos cogumelos traz em si essas nuances de simplicidade elegante. Um silêncio eloquente. E procurei descrever com brevidade articulada digna de um haicai. Houve um enlaçamento, uma simbiose de forma e conteúdo. Haikai é um livro pequeno, mas não menor.

Aprendi durante a tutoria da Chef Telma Shiraishi, do Restaurante Aizomê, um dos inúmeros presentes que recebi de Jo Takahashi. Aliás, quanto mais o tempo me distancia daquele momento, mais eu observo a riqueza dele, pois permanece em mim.

Procurei Telma por intermédio do Jo, para me orientar sobre a alta gastronomia japonesa, que não existe no Brasil. E dos cogumelos, chegamos a refeição Kaiseki.

Especialmente aos princípios de uma refeição kaiseki, a alta gastronomia no japonesa: a sazonalidade dos ingredientes locais, a demonstração de habilidade do chef, a arte na apresentação, a disposição das cores, o equilíbrio entre as dádivas da natureza e o trabalho do homem. A provocação de todos os cinco sentidos, e no paladar, além do ácido, doce, amargo, salgado, o quinto sabor: o Umami. O sabor do delicioso.

Como poderia discorrer sobre esses temas sem recorrer a estrutura dos princípios de um haicai? Foi o modo como encontrei de expressar a beleza de momentos únicos.

Segundo Trevanian, não se atinge o Shibumi, descobre-se. Foi a minha maneira de descobrir oShibumi da cultura oriental.

FERNANDO ANDRADE:  Os pequenos haicais que você cria em cada capítulo funcionam como um belo complemento sobre arte de criar as  lacunas onde as relações entre gêneros, prosa e poema se fazem, com pouco \ muito é próprio do trabalho com as palavras e suas intensidades e levezas.  Comente.

CÁSSIA PENTEADO: Os haicais que escolhi para constarem em Haikai, são do mestre Matsuo Bashō. Eu lia haicais antes de escrever, um ritual para entrar no espírito da escrita. E, de repente, notei que eles estavam dentro do meu Haikai. Então, simplesmente os inseri. Muitas vezes eles anunciam o que vou contar, em outros momentos concluem quase que como um acorde final. Assim, encontrei a melodia que buscava para escrever Haikai. Vejo a literatura como arte. Por que não poderia reunir estilos literários em uma obra? Por que não podemos criar outros estilos literários? Vejo meu romance Haikai como um haicai em prosa. 

Cássia Penteado

01/12/2021

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This Article Has 1 Comment
  1. Maria da Glória Hazan Reply

    Maravilhosa experiência a leitura ” Haikai” de Cássia Penteado.
    A delicadeza das diferentes nuances do tecido literário emergem na palavra, invadem a alma, sensacao de plenitude!
    Obrigada !

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